Fonte

This is currently a Portuguese only post, as its content, a cyberpunk themed short story, was created during a writing event – “It’s Alive” by Imaginauta (you are awesome) in Lisbon, with the purpose of writing a short story of speculative fiction in 4 hours or less. This was my shot at it and I truly hope you enjoy it.

Fonte

A Noite das Mil Almas era já um acontecimento habitual das elites da alta sociedade runner de Santa Mónica.

As suas vestes predominantemente negras exalavam os ecos de um saudosismo retro-noir, pautadas pelos tons pastéis ocasionais ou pelos gritos de neon emergente, oscilando na característica (não) binária de quem as usava em plena ostentação.

n3Xt

Ecos de estática, uma memória analógica do passado, podiam ser vistos e ouvidos pelo corredor onde os participantes eram encaminhados para a sala principal. Muito poucos sabiam, os neófitos, das origens do edifício onde se encontravam: tinha sido em tempos um matadouro. 

“Um matadouro…” pensou n3Xt enquanto sentia reverberações de um passado agora distante, onde carne era algo comum no dia a dia de muitas pessoas, onde animais se alinhavam, e definhavam, num passeio iterativo de um perpétuo ciclo de morte e renascimento. Carne animal era algo do passado, e muitas destas pessoas também, pensou, enquanto observava os participantes no seu caminho pelo corredor. 

n3xt tinha feito o seu trabalho de casa. Ele era daquelas pessoas que tentava sempre demasiado, esforçava-se demais, tudo com o objectivo de se sentir mais incluído, de poder dizer que tinha o direito de fazer parte do mundo onde se movia.

Como tal, não era de estranhar ter feito todo um esforço para procurar toda a informação disponível sobre o sítio onde se encontrava.

As mensagens deixadas nas paredes pareciam ilustrar a temática deste encontro. Circuitos de diodos orgânicos iluminavam o lúgubre e estreito caminho deixando pouco espaço para liberdade de escolha. Ou pelo menos assim parecia. A ténue bioluminescência era a escolha ideal para o ambiente escolhido. “Techno-Necromancia” – uma palavra demasiado pomposa para um clickbait vulgar. Parecia ser era a nova moda dos… – 

“Vais andar ou ficar feito parvo a olhar para isso?”

StiiX

“Pelo menos não fico aqui sozinha.” Pensou, assim que identificou n3xt no corredor, parado a olhar para as mensagens na parede, como um miúdo encantado pelas promessas televisivas de um futuro melhor.

n3xt ficou francamente sobressaltado com a brusquidão do comentário. Sobressalto esse seguido de um sorriso à medida que se virava para ela. “Ainda bem que pudeste vir – viste a minha mensagem?” Perguntou neXt. StiiX anuiu. “Vais mesmo ficar à espera que algo sério saia das nossas discussões do canal? És assim tão inocente? Eu vim pela comida e para tentar sacar uns stims novos que ouvi dizer que andam por aí – sabes que a fronteira tem andado mais controlada, certo? Está a ser difícil encontrar stims como os que o Sl31pn1r arranjava…”

“Tens de acreditar em mim StiiX – eu VI num stream e posso confirmar que era legítimo, ou pelo menos as pessoas no stream acreditavam piamente no que estava a acontecer, e até…”

“Poupa-me!” Interrompeu, “Gosto de certezas e não de fantasias infantis. Viste as hashes?”

“Vi e validei três vezes.”

“Spoofing?”

“Impossível – routing público, embora encriptado, mas sem esforço de encobrimento. É como se…”

“Analisaste a imagem? Pixel dusting e espectro?” 

“Tudo. Sabes que sou bastante minucioso e bom nisso.”

Sim, é verdade, ele é muito bom nisso e não é o tipo de runner susceptível a engodo pseudo-criptográfico sensacionalista.

Começaram a caminhar para a sala e um manto de silêncio caiu sobre os dois, como se uma redoma de redução de som se tivesse interposto entre eles e o mundo. Nada para além dos seus pensamentos era capaz de a penetrar, e o som dos demais e das suas passadas eram apenas ecos perdidos num tempo diferente, numa realidade distante.

Str0m

A dor física era omnipresente na sua vida, mas a agonia da separação era muito mais do que podia aguentar. Tinha conhecido a fonte, o kaos primordial, a sensação extática da gnose e o abraço protector e nutridor do amor incondicional. E agora tudo isso lhe tinha sido retirado, cortado impiedosamente sem sentido e sem aviso prévio.

Estava à espera, segundo a segundo, por quem ainda podia levá-lo de volta aquele cobertor de prazer, já que nada mais fazia sentido na sua existência. Viu-os entrar na sala principal. O evento que os tinha prendido naquele lugar já tinha deixado de fazer sentido há muitos ciclos atrás. Estava na altura de agir.

“Ainda bem que vieram… Preciso de um favor.” Disse, fazendo um esgar de dor enquanto terminava a frase.

“Isto tem a ver com o que-”

Levou o dedo aos lábios de Stiix. “Aqui não! Ali.” Disse, apontando um indicador para um conjunto de salas preparadas para discussões mais privadas.

Tinham saído do salão principal do evento, onde no meio dos sons, das cores, dos cheiros, dos strobs, passaram por vários grupos de pessoas em direção às salas Faraday, cujo nome era bastante auto-explicativo sobre o seu propósito: malhas de cobre, isolamento acústico e geração de ruído branco permitiam conversas quase privadas – quando nada é verdadeiramente privado – para todas as necessidades especiais dos encontros mais delicados do evento.

“Ouçam-me até ao fim.” Pediu Str0m. “Tudo isto é real. Eu estive lá, eu SENTI o que vos falei. A FONTE É REAL!” Disse por momentos de dolorosa exaltação. “Preciso da vossa ajuda para regressar” disse já mais calmo “e estou disposto a pagar bem por isso. Não me interessa se acreditam ou não, mas tudo o que vos peço é que me levem de volta e me deixem lá.”

N3Xt e Stiix trocaram olhares. Havia cumplicidade no julgamento, e isso não tinha ficado retido no diálogo mudo entre os dois interlocutores. Str0m percebeu mas não queria saber do que aqueles dois pensavam. Nada mais interessava e só queria despachar aquele momento de uma vez por todas.

“Stiix, tenho o que tu precisas. Arranjo-te uma linha dedicada de 2TB de upstream bem como um pack de n3ur0X – dos verdadeiros, nada de merdas contrafeitas chinesas – e podes ficar com as ligações de interface neural – Sakura, dos novos – tudo de alta qualidade e nunca usado”. Os olhos dela abriram-se e, subitamente e por alguns segundos apenas, a adulta e experiente runner de 38 anos era agora uma jovem menina encantada com a promessa dos melhores presentes de Natal. 

 “Vou precisar de AC de qualidade, bem como de um sítio seguro e isolado.”

“Já foi tudo tratado. n3xt, tu vais comigo. Preciso de alguém que me ‘segure a porta’, por assim dizer.”

“E como é que isso vai colar? Ninguém me conhece lá, vou ser o gajo estranho para quem todas a gente vai olhar.”

“É mesmo isso que eu quero. Vais ser o isco.”

“Foda-se… não estou a gostar nada desta merda!”

“Relaxa! Podemos trazer um neófito por sessão – tipicamente não temos pessoas tão jovens, por isso é perfeito. Acho que nunca vi ninguém nos seus vintes por lá, nem ninguém com tão poucos implantes como tu tens.”

“Não te vou conseguir proteger quando estiveres lá. Sabes disso certo?” pensou Stiix, como se conseguisse telepaticamente falar com o seu interlocutor.

n3xt

N3xt era alguém que resolvia problemas, apesar de estar nos seus 28 anos, já tinha visto mais morte e desolação do que muitos adultos no exército. Tinha uma enorme cicatriz que lhe cruzava a face na diagonal, desde a sobrancelha direita até perto do recanto esquerdo do lábio superior. Toda uma infância passada na rua habilitava-o para saber tratar bem de si, ao ponto de ter sido escolhido várias vezes por Str0m para trabalhos mais peculiares onde as capacidades de infiltração, extracção, aliadas a algum treino de combate eram bastante úteis.

Hoje sem dúvida seriam postas à prova novamente, pensou, quando Str0m encostou o carro à berma, numa zona industrial a Este das docas de South Beach.

Dirigiram-se para a fábrica em ruínas. Ninguém diria que algo se passava ali. Ninguém excepto quem reparasse no denso emaranhado de cabos de fibra óptica e electricidade vindos de um esgoto próximo, tal como se de uma estrutura helicoidal de serpentes de cobre e fibra óptica tivesse decidido sair das profundidades ctónicas para dar à luz num ninho urbano decadente e desolado.

Str0m sabia onde ir. Stiix acompanhava-os à distância do ciberespaço, numa presença imaterial mas omnipresente. Era reconfortante sabê-la por perto, mesmo que não a conseguisse ver. 

Passaram por várias portas sem ver ninguém, até chegarem perto de um elevador antigo e ferrugento mas aparentemente ainda em funcionamento. Perto do mesmo, encostada à parede, estava uma figura humana completamente transfigurada por anos e anos de transhumanismo. Até a voz era cavernosa e distorcida, como se proveniente de um oscilador estragado e com corrente instável.

Str0m fez sinal para aguardar enquanto se dirigia para aquela pessoa, potencialmente um guarda, onde por breves momentos os dois trocaram olhares e palavras, por vezes acenando para n3Xt, mas sempre num tom baixo e imperceptível.

Pouco tempo depois Str0m faz um sinal para avançar e tomam todos o elevador para um piso inferior. A descida parece interminável e não se entende quão fundo se encontravam, mas aparentemente não o suficiente para quebrar a ligação com Stiix, contudo nada prepararia n3Xt para o que iria encontrar naquela cave.

Stiix

“Estás a ver isto?” Sussurrou n3Xt.

“Estou e não consigo acreditar… tinhas razão.”

Pelo feed conjunto de Str0m e n3Xt, e graças a uma implementação de renderização com recurso a redes neuronais, conseguia vislumbrar, apesar da fraca qualidade da ligação, talvez devido ao facto de se encontrarem algures abaixo do nível térreo, uma massa amorfa do que parecem ser vários corpos humanos, alguns vivos, outros talvez não, uns completamente alterados com implantes, outros apenas com uma ligação neuronal, mas todos como que empilhados sem nexo, ligados ao que parecia ser um interface de um cluster de máquinas, conectadas ao aparente conjunto de cabos provenientes do exterior.

n3Xt tinha coberto o nariz com a mão pois o fedor era insuportável. O cheiro a urina, fezes e decomposição enchia a sala toda e impossibilitava qualquer outro tipo de sentido de exercer uma força tão grande como o olfacto.

“Fica atento n3Xt” sussurrou Str0m. E os dois avançaram para uma zona onde alguns cabos de hiperligação neuronal se encontravam dispostos no chão.

Ninguém parecia ter notado a presença dos dois novos elementos na sala e por isso caminharam sem incidentes até aos cabos terminais.

“Quando eu me ligar estás por tua conta, percebes isso? Vais ter de te safar sozinho.” Disse a n3Xt.

Silêncio. E depois nada. Tracers começam a dar sinal de sim. Algo subitamente tinha ficado estranho naquela subrede. “Merda! Fomos comprometidos. N3xt sai daí caralho…” 

Anos e anos de experiência de runs constantes não a tinham preparado para isto. Foi como se, através do ciberespaço, uma mão etérea lhe tivesse agarrado a medula através da cadeira onde se encontrava para a puxar com toda a força para o chão.

Gritou. E esse grito ficaria no imprint de n3Xt para sempre.

Str0m

Ele sabia o que se passaria a seguir. Particularmente quando os guardiães da Ordem do Deus Permanente, até então envoltos em perfeita camuflagem com as paredes, surgiram de entre as sombras e agarraram n3Xt. Com os membros superiores totalmente substituídos por implantes militares, tornaram inúteis os esforços de n3Xt. Rapidamente foi subjugado e levado para perto de um dos cabos, donde seria ligado à fonte para ser um só com o Deus.

Str0m sabia o que iria acontecer de seguida, e os gritos de dor agonizante de n3Xt não foram nenhuma surpresa, mas o seu destino e o dos seus companheiros estava traçado, e só conseguiu sorrir de deleite quando finalmente se ligou ao colectivo, à fonte.

Estava em paz novamente, e nada mais lhe interessava.

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